A MANIFESTAÇÃO DAS "GUERRAS" DA CIÊNCIA NO CAMPO CIENTÍFICO DA EDUCAÇÃO FÍSICA
Verônica Jocasta Casarotto
Este artigo foi publicado na "ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO (PPGE/ME/FURB-ISSN:1809-0354), Blumenau, v.6, n.2, p.447-469, mai./ago., 2011" na autoria de
Júlia Paula Motta de Souza (Universidade Estadual de Campinas; e-mail: juliapaulams@gmail.com), onde faço um breve resumo do que a autora expõe sobre a temática e, posteriormente exponho minha opinião a respeito do tema.O Campo Científico
Bourdieu (1990, p.89-94), define Campo como o "lócus onde se trava uma luta concorrencial entre os agentes, em torno de interesses específicos que caracterizam a área em questão". Segundo o autor, os atores sociais estão inseridos espacialmente em determinados campos sociais, à posse de grandezas de certos capitais (cultural, intelectual, econômico, político, etc.), assim a idéia de campo científico não se diferencia de um campo social qualquer, pois esse traz consigo suas inter-relações de força, suas disputas implícitas e abertas, seus jogos de estratégias e interesses e se constitui por um sistema de relações objetivas entre posições conquistadas pelos atores.
Segundo o autor supracitado a noção de campo é útil para escapar à alternativa da ciência pura, totalmente livre de qualquer necessidade social, e da "ciência escrava", sujeita a todas as demandas político-econômicas, assim as pressões externas ao campo se exercem mediatizadas pela lógica do campo.
Considera-se que há dois tipos de poder: O poder temporal ou político, ou o poder institucional ou institucionalizado, que consiste na ocupação de posições importantes nas instituições científicas, direção de laboratórios ou departamentos, pertencimento a comissões, comitês de avaliação, etc., o poder sobre os meios de produção (contratos, créditos, etc.), poder de nomear, indicar, etc. O segundo poder é o específico, baseado nos acordos dos agentes do campo sobre os princípios de verificação, os métodos comuns de validação de teses e hipóteses, instrumentos e técnicas de experimentação coletivamente acumulados e coletivamente empregados sob a imposição das disciplinas e das censuras do campo.
Quanto mais autônomo for um campo científico mais a censura é científica. Neste caso para triunfar é preciso argumentos, demonstrações e refutações, é preciso fazer valer razões. Contudo, é necessário que o campo científico ainda não possua autonomia.
As ‘Guerras da Ciência’
A denominação "guerras da ciência" eclodiu no início dos anos 90 no Reino Unido e nos EUA e posteriormente se alastrou a outros países.
O debate iniciou-se por uma crítica do grupo dos pós-modernistas, que negava a capacidade da ciência de produzir um conhecimento verdadeiro e objetivo sobre o mundo. Já o grupo dos defensores da Ciência (cientistas ortodoxos), ao ver seu poder ameaçado, reagiu responsabilizando o primeiro bloco pela perda de prestígio da ciência ao corroer a Razão, a Verdade e a Objetividade.
No final dos anos cinqüenta ouve uma retomada sobre os debates entre as duas culturas (humanística e científica) onde apareceram diferenças epistemológicas não apenas entre elas, mas também no interior de ambas, deixando claro, no mínimo, a diversidade de perspectivas e a disputa de poder dentro do campo científico.
Trazendo essa disputa para o campo da Educação Física, Bracht (1999) identifica o problema da flutuação epistemológica que a área sofre em função da alternância do predomínio ora das subáreas das ciências naturais (fisiologia, antropometria, biomecânica, etc.) ora das subáreas das ciências humanas (pedagogia, antropologia, filosofia, etc.), num processo de colonialismo epistemológico. Sendo que a própria localização da educação física em uma grande área (área da saúde, ou na área das ciências humana - educação) já é motivo de disputa de poder e de autoridade.
Análise Epistemológica
Nesta pesquisa foi analisado a produção científica do Programa de Pós-graduação stricto senso em Educação Física da Unicamp, de 1991 (data da primeira defesa) a dezembro de 2008 (data da coleta dos dados).
Em estudos realizados na década de 80, Sanchez Gamboa (1987, 1989) procurou caracterizar as tendências paradigmáticas da produção na área da Educação e classificou a pesquisa educacional em três abordagens, seguindo a mesma classificação utilizada por Habermas (1982): o trabalho (interesse que os homens têm de por ordem no mundo e de controlá-lo), a linguagem (procura interpretar os acontecimentos, o mundo, a vida humana, a sociedade) e o poder (criticar as interpretações habitualmente recebidas) – que por sua vez interagem com os três tipos de interesse humano que norteiam o conhecimento científico: o técnico (O interesse técnico visa o modo de se fazer as coisas concretamente;), o consensual (visa comunicar o sentido que damos aos acontecimentos) e o emancipador (visa libertar-nos das idéias geralmente recebidas).
Dessa forma, esses três interesses identificam-se com três tipos predominantes de abordagens na pesquisa: empírico-analítica, a fenomenológico-hermenêutica e crítico-dialética. Em suas pesquisas mais recentes, Sanchez Gamboa tem trabalhado com uma quarta classificação, em função de uma nova abordagem que tem aparecido muito nas pesquisas educacionais: a pós-moderna.
Destacamos que a presença de uma pluralidade de abordagens científicas dentro de uma mesma área é também uma manifestação dos conflitos do campo, ou seja, admitir que há uma diversidade de maneiras de ver e focalizar a problemática da Educação Física é uma forma de quebrar a pretendida hegemonia de alguns métodos, que ganharam hegemonia na trajetória da pesquisa ao longo de sua história.
Sanchez Gamboa (1998) enfatiza que toda pesquisa deve ter como ponto de partida a elaboração de uma pergunta (P) e que esta deve se originar a partir do mundo da necessidade, que se traduz em indagações, questões e estas se qualificam em perguntas, claras, distintas e concretas.
Todo processo de produção do conhecimento inclui conteúdos filosóficos, lógicos, epistemológicos, teóricos, metodológicos e técnicos. Estes conteúdos podem ser organizados por níveis de amplitude e por grau de explicitação, começando pelos fatores que apresentam em forma explícita até aqueles que se encontram em forma de pressupostos implícitos. Neste sentido, a abordagem epistemológica poderá esclarecer as relações entre técnicas, métodos, paradigmas científicos, pressupostos gnosiológicos e ontológicos, todos eles presentes, mais ou menos explícitos, em qualquer pesquisa científica.
Resultados Parciais e Algumas Interpretações
Até dezembro de 2008 o Programa de pós-graduação em Educação Física da Unicamp havia produzido 573 teses e dissertações, dos quais 412 correspondem a dissertações de mestrado e 161 correspondem a teses de doutorado. Através da leitura dos resumos de todas as pesquisas foi possível realizar um mapeamento do Programa, traçando um panorama geral das temáticas mais desenvolvidas. Dentre esse total de pesquisas, 48 foram selecionadas através da técnica sistemática, que é uma técnica de amostragem probabilística.
De acordo com a classificação das abordagens epistemológicas explicitadas acima, encontramos as 48 pesquisas analisadas assim distribuídas: 26 empírico-analítico (54,16%); 15 fenomenológico-hermenêutica (31,25%); quatro (4) críticos- dialéticos (8,33%), duas (2) pós-moderna (4,16%) e uma (1) outras (2,08%)4.
O maior número de pesquisas utiliza abordagem empírico-analítica, que tem como interesse cognitivo principal o valor técnico de controle. Em segundo lugar encontra-se a abordagem fenomenológico-hermenêutica, que tem como interesse principal a interpretação e a compreensão. Em terceiro lugar, as crítico-dialético, que tem como interesse principal a crítica e a emancipação. Depois há ainda as pós-modernas, que na perspectiva de análise aqui adotada, o principal interesse está no diálogo entre diferentes saberes.
A repetição dos resultados antes já encontrados por Sanchez Gamboa, Silva e Chaves revela que o predomínio da abordagem empírico-analítica não é algo pontual, isolado, localizado em um Programa ou em um momento específico, e traz uma necessária reflexão sobre os limites dessa „guerra‟ entre as humanas e as biológicas.
As duas perspectivas mais numerosas (a empírico-analítica e a fenomenológico-hermenêutica) tem polarizado o debate no Programa analisado entre as chamadas "pesquisas qualitativas" de um lado e de outro, e com maior hegemonia, as chamadas "pesquisas quantitativas".
Mas, concordamos com Sanchez Gamboa (2010) quando defende que a escolha da pesquisa não pode ser reduzida apenas à opção dentre duas técnicas.
As técnicas devem estar articuladas com os métodos, com os referenciais teóricos, com as abordagens epistemológicas e com os pressupostos ontológicos e gnosiológicos, que estão implícitos em toda pesquisa científica.
Esse falso dualismo entre de um lado técnicas quantitativas e de outro técnicas qualitativas parece contagiar a discussão entre os paradigmas, que se polarizam entre a perspectiva empírico-analítica, que utiliza técnicas quantitativas e a perspectiva fenomenológico-hermenêutica, que utiliza técnicas qualitativas e parece ser revelador de uma certa ´inconsciência do método´, já que a discussão epistemológica propriamente dita não está posta.
A limitação das alternativas da pesquisa em Educação Física a duas abordagens epistemológicas fundamentadas nas tradições positivistas e fenomenológicas, traz alguns riscos como, por exemplo, enquadrar de forma indiscriminada diferentes experiências científicas num mesmo campo epistemológico e também traz o risco de excluir outras abordagens, dentro do raciocínio lógico do "terceiro excluído".
O confronto com novos modelos, em experiências de pesquisa sempre renovadas e revisadas, contribui para a elaboração de novas versões que superam as dicotomias, pois a prática concreta da pesquisa não pode ser forçada ou enquadrada em formas de conceituação estáticas.
Diante do que foi exposto pela autora percebe-se que as subáreas – humanas e saúde – buscam constantemente se sobre sair uma sobre a outra, contudo o mais importante é a qualidade e a quantidade de benefícios que ambas proporcionam a população. Acredito que todas as pesquisas necessitam acarretar ganhos que sejam significativos a todos e não somente aos acadêmicos. Na atualidade a mídia constantemente apresenta as pesquisas como mercadorias, incentivadas pelo capital. O sentido que se observa cada vez mais é o de produzir e aumentar essa produção, tendo em vistas sempre o aumento do lucro. É passível de se observar que algumas pesquisas são desenvolvidas com propósitos individuais ou mercadológicos e, esses fatores são importantes para trazer à luz a reflexão sobre o que determinadas pesquisas trazem de benefícios a população que é a grande beneficiaria delas.
Mas, pelo que revela a amostra analisada, o debate epistemológico não está posto no Programa de Pós-graduação em Educação Física e, se há uma „guerra‟ entre as biológicas e as humanidades, as biológicas tem ganhado com larga vantagem, sendo que as humanidades correm, inclusive, o risco de deixarem de existir.
Será o Fim das Humanidades Dentro do Campo Científico da Educação Física?
No caso do Programa de pós-graduação em Educação Física da Unicamp, para que um professor seja pleno ele deve ter no período de 3 anos um total de 390 pontos em periódicos constantes no Qualis Capes. Para que o professor continue credenciado no Programa de pós como professor pleno (e não como professor participante ou visitante) ele deve atingir no mínimo 150 pontos. Ocorre que todos os periódicos considerados A1 e A2 na educação física são da área das biológicas.
Vale ainda destacar que para ser professor participante do Programa de pós-graduação em educação física da Unicamp o docente deve fazer 200 pontos no triênio, o que também não é simples de atingir.
Esses critérios absolutamente inatingíveis para a área das humanas têm gerado alguns descredenciamentos de professores, sendo que, no momento, só há 4 professores plenos que atuam na área das humanidades dentro do Programa de pós-graduação em educação física da Unicamp, sendo que um deles está próximo de se aposentar e um outro está atuando também na pós em educação da Unicamp e, pode ser que em breve, se desvincule do programa da educação física e fique somente na educação
Esse movimento de diminuição gradativa das humanidades dentro dos Programas de pós-graduação em Educação Física não está se dando isoladamente e é analisado com detalhes por Manoel e Carvalho (2011), no Brasil os critérios de avaliação têm privilegiado a produção que é biologicamente orientada em detrimento das orientadas para as áreas de humanas e sociais a tal ponto que todos os programas de pós-graduação em educação física no país têm procurado seguir o caminho da internacionalização:
Ocorre que os docentes ligados às subáreas socioculturais e pedagógicas têm perdido sistematicamente espaço dentro dos programas de pós-graduação em educação física, sendo que muitos deles têm, inclusive, migrado para outros programas em busca de mais reconhecimento, como os programas de pós em Educação, por exemplo.
Será que estamos caminhando para o fim das humanidades dentro do campo científico da educação física? Qual a solução para reverter este quadro?
Conclusão
Ao finalizar o texto a autora expõe que a superação das "guerras da ciência‟ dentro do campo científico da educação física passa, necessariamente por uma reflexão epistemológica, pois se ainda não há uma solução para estas questões e o consenso esteja ainda longe de existir é preciso, no mínimo, que o debate seja considerado.
A reflexão epistemológica apresenta-se como um trabalho no qual se integram elementos gnosiológicos, ontológicos, lógicos, históricos, sendo uma reflexão crítica sobre os pressupostos, os resultados, a utilização, o lugar, o alcance, os limites e a significação sócio-culturais da atividade científica. Dentro desta perspectiva, a atividade crítico-reflexiva da epistemologia torna-se indispensável a todos quantos ao fazerem ciência pretendem saber o que estão fazendo, como estão fazendo e para que a estão fazendo.
Como estratégia para conquistar os pesquisadores para que adotem uma postura crítica em relação a atividade que realizam, uma forma possível é que os programas de pós-graduação em educação física abram mais espaço para a reflexão epistemológica na formação de seus pesquisadores.
Para que a área de educação física se desenvolva mantendo sua identidade é preciso o reconhecimento de que uma subárea depende da outra e o reconhecimento que se os problemas concretos e preementes da realidade brasileira forem tratados em conjunto por pesquisadores das duas subáreas, a educação física tem muito mais chances de responder às necessidades reais da sociedade brasileira.
É necessário que se construa um caminho próprio, crítico, comprometido com a transformação social. Se tomarmos como base o entendimento de que a ciência pode ser compreendida tanto como uma produção social específica, determinada pelas condições institucionais e históricas da sociedade, quanto como um potencializador de transformações dessas mesmas condições, revela-se de fundamental importância estudos que estimulem a auto-reflexão por parte dos cientistas, visando o progressivo aprimoramento dessas condições e o desenvolvimento de novos instrumentais teórico-metodológicos que potencializam esse tipo de produção social. Se a ciência é reflexo do avanço neoliberal e seu apetite voraz por transformar tudo em mercadoria, dialeticamente a ciência também pode ser construtora e transformadora desta mesma sociedade.
Olá Verônica! Parabéns pelo seu texto. Trouxe bons esclarecimentos. Abraços Prof. Hugo
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