Hugo Norberto Krug
Considerações iniciais a respeito da Educação Física Escolar, os Parâmetros Curriculares Nacionais e a atual legislação
Segundo Sá e Godoy (2001) para que se possa compreender as leis que norteiam a inserção da Educação Física no âmbito escolar, é necessário, entre outras coisas, conhecer as vertentes históricas que pautaram cada uma das etapas desta disciplina, uma vez que os objetivos e as propostas educacionais da Educação Física foram se modificando ao longo do século XX e de algum modo ainda influenciam as práticas pedagógicas dos professores de Educação Física.
Entretanto, gostaríamos de salientar que não propomos fazer aqui um delineamento histórico e, desta forma, o objetivo deste ensaio foi abordar uma reflexão a respeito da realidade da Educação Física Escolar no que diz respeito à legislação e a implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, reflexão esta realizada por Sá e Godoy (2001).
Reflexões sobre a legislação atual da Educação Física Escolar
Sá e Godoy (2001) fazem a seqüência a seguir de reflexões sobre a legislação atual da Educação Física Escolar.
Como parâmetro inicial desta reflexão, os autores citados anteriormente consideram que em 1971 vigorava o decreto-lei de n° 69.450, que compreendia a Educação Física no currículo escolar como:
[...] atividade que, por seus meios, processos e técnicas, desperta, desenvolve e aprimora forças físicas, morais, cívicas, psíquicas e sociais do educando, constituindo um dos fatores básicos para a conquista das finalidades da educação nacional (art. 1°).
Este decreto só foi revogado em dezembro de 1996, com a promulgação da lei n° 9.394 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996a), que é a referência da educação atual.
Segundo esta lei, a educação:
[...] abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais, nas organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais (art. 1°).
De acordo com a mesma lei, a educação deve ter como finalidade o pleno desenvolvimento do educando.
A partir desta legislação, o ensino fundamental, juntamente com a educação infantil e o ensino médio, compõe a educação básica, que tem por finalidade:
[...] desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores (lei 9.394/96, arts. 21 e 22).
Pela Lei de Diretrizes e Bases, cabe aos estados e municípios definir formas de colaboração na oferta do ensino fundamental, o que de certa maneira pode trazer grandes benefícios, pois são consideradas as peculiaridades de cada região do Brasil e se confere aos estados e municípios autonomia política de organização.
Entretanto, ainda segundo Sá e Godoy (2001), devemos atentar para o fato de que essa organização encontra-se vinculada tanto aos recursos humanos - profissionais qualificados para o desenvolvimento de um projeto político-pedagógico - quanto aos recursos econômicos e financeiros disponíveis em cada região, o que pode gerar grandes disparidades no sistema educacional como um todo, reforçando o atraso educacional de algumas localidades e privilegiando os grandes pólos culturais.
A legislação determina, nas disposições gerais, que:
a Educação Física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular da educação básica, ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar, sendo facultativa nos cursos noturnos (lei n° 9.394/96, cap.II, seção I, art. 26,§ 3°).
O texto legal menciona a integração da Educação Física à proposta pedagógica da escola, a fim de que ela seja considerada componente curricular, o que pode levar a um entendimento de que a Educação Física esteve anteriormente, desvinculada das propostas pedagógicas e, portanto, distante das preocupações educacionais (NEGRÃO, 1999).
Ainda pensando na integração da Educação Física à proposta pedagógica da escola, conforme determina a lei, sobrevém a seguinte questão: Como pode a Educação Física ser facultativa a um grupo de alunos (os que freqüentam cursos noturnos) e componente curricular, portanto obrigatório para os grupos que freqüentam cursos diurnos?
Poderia-se concluir, então, que disciplinas como Matemática e Português entre outras, são facultativas a um determinado grupo de estudantes, em decorrência do período em que freqüentam as aulas.
É importante perceber que a lei é contraditória pois, antes de dizer que a Educação Física é facultativa nos cursos noturnos, determina que ela deve "ajustar-se às condições da população escolar" (Art.26,§3°) e faz referência a uma educação vinculada ao mundo do trabalho (Art.1°, §2°).
Isso pode ser interpretado como uma punição, na medida em que impede o acesso do estudante/trabalhador do curso noturno a essa prática pedagógica ou área de conhecimento, o que demonstra uma certa ambigüidade da legislação, que permite diferentes interpretações (Coletivo de Autores, 1992).
Embora a determinação legal presente LDB tenha por objetivo orientar a implantação de uma nova proposta de ensino no Brasil, devemos considerar os possíveis desdobramentos decorrentes destas ações.
Um desses desdobramentos pode ser observado na deliberação n° 10/97 do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, aprovado em 30 de julho de 1997, que, ao fazer referência à Educação Física nas disposições gerais, entende que ela:
é componente obrigatório da educação básica para todos os alunos, desvinculado do conceito de séries e de conformidade com a proposta pedagógica da escola, devendo ajustar-se às faixas etárias e às condições da população escolar e não deve levar à retenção, já que, no ano seguinte, o aluno estaria, de qualquer forma, obrigado a freqüentá-la com os mesmos colegas ou, por reclassificação, seria incluído em turma mais ajustada à sua faixa etária e desenvolvimento físico (item 2.9).
Com base nesse pressuposto, a Educação Física retorna à categoria de atividade, uma vez que o comprometimento com a formação integral do aluno se restringe ao seu desenvolvimento físico.
Esta interpretação da lei pode ter como conseqüência a descaracterização da Educação Física como um componente curricular da educação escolar, tornando-a uma área técnica ou recreativa desprovida de função no processo educativo.
A legislação representada pela LDB, ao incluir desta forma a Educação Física nos currículos escolares, dá a impressão de que esta pode cumprir funções, desvinculadas dos propósitos educacionais, fortalecendo a idéia de que é um apêndice, uma academia de ginástica e de esportes dentro da escola, podendo ser considerada pelo senso comum um curso extracurricular.
Por outro lado, ao delegar à escola e ao professor a construção de uma proposta pedagógica integrada de Educação Física, o ordenamento legal responsabiliza-os pela adaptação da ação educativa escolar às diferentes realidades e demandas sociais.
Este fato deve provocar um maior comprometimento da escola e do professor de Educação Física, pois incentiva o sistema educacional a desenvolver um projeto e a colocá-lo em prática, e torna necessário um instrumento que oriente as propostas curriculares escolares.
Para responder a esta demanda, foram elaborados, a partir de 1996, pelo Ministério da Educação e pela Secretaria de Educação Fundamental, os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1996b), conhecidos como PCN's e considerados como referência de qualidade para o ensino fundamental de todo o país. Esse documento foi elaborado com o objetivo de melhorar a qualidade da aprendizagem dos alunos. Sem caráter de obrigatoriedade, os PCN constituem um instrumento de aperfeiçoamento da prática dos professores, auxiliando na elaboração e na execução do projeto pedagógico da escola, assim como na revisão das propostas curriculares das secretarias e na definição de critérios de avaliação dos sistemas municipais, estaduais e nacional de ensino.
Os PCN’s devem ser uma referência consistente para a transformação dos objetivos, dos conteúdos e das didáticas do Ensino Fundamental, de forma a possibilitar que se coloquem em prática os princípios da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Na efetivação de tal proposta, deve ser considerada a pluralidade dos campos de conhecimento e de cultura de nosso tempo, em que cada área de conhecimento possui um corpo conceitual que a define.
Esse corpo conceitual é determinado pela concepção que fundamenta a área de conhecimento e que, neste caso, segue a tendência da abordagem crítico-superadora, concepção que evidencia a natureza dos conteúdos tratados, definindo claramente que conhecimentos serão abordados.
No Brasil, os trabalhos desenvolvidos na área da Educação Física de forma geral pautam-se na conceituação de corpo e de movimento, levando em consideração, na construção de seus conteúdos, aspectos fisiológicos e técnicos (Coletivo de Autores, 1992).
Os PCN ressaltam a necessidade de se superar esses conceitos e baseia-se em uma abordagem que engloba, além dos aspectos fisiológicos e técnicos, os aspectos sócio-culturais que caracterizam as pessoas, que interagem e se movimentam.
Foram eleitos dois conceitos que pretendem nortear esse componente curricular. O primeiro deles é o organismo, definido como um sistema estritamente fisiológico, e o segundo é o corpo, que se relaciona dentro de um contexto sócio-cultural.
Com essas preocupações, a visão que se tem da Educação Física foi direcionada para a expressão de produções culturais e como de conhecimentos historicamente acumulados e socialmente transmitidos. Em outras palavras, a Educação Física passou a ser entendida como uma cultura corporal de movimento, pois parte-se do pressuposto de que o movimento humano e o corpo adquirem significações que estão inseridas em um contexto social e cultural e que se manifestam de acordo com os diversos momentos históricos de uma sociedade.
A partir dessa concepção, a Educação Física passa a ser, nos currículos escolares, a área de conhecimento responsável por introduzir e integrar os alunos na cultura corporal de movimento com a finalidade de proporcionar lazer, expressão de sentimentos, afetos e emoções, assim como a manutenção e a melhoria da saúde (Brasil, 1998).
Assim, o tratamento dos conteúdos da área muda radicalmente, pois teoricamente, ocorre um rompimento com o tradicional, cujo foco central é a aptidão física.
Nesse sentido, Educação Física "busca garantir a todos a possibilidade de usufruir de jogos, esportes, danças, lutas e ginástica em benefício do exercício crítico da cidadania" (Brasil, 1998, p.62).
A partir daí, faz-se necessária uma alteração da metodologia de ensino, que deve enfatizar o "desenvolvimento da autonomia, da cooperação, da participação social e da afirmação de valores e princípios democráticos" (BRASIL, 1998, p.62).
Para que isto ocorra, são eleitos na formação do eixo estrutural da ação pedagógica três aspectos, considerados pelos PCN’s como fundamentais para a reflexão e a discussão da prática pedagógica da área de Educação Física escolar.
O primeiro aspecto é o princípio da inclusão, que diz respeito à inclusão do aluno na cultura corporal de movimento por meio de participação e de reflexão concretas e efetivas. Dessa forma, procura-se, modificar a configuração do quadro da Educação Física nas escolas, em que se selecionam os indivíduos a partir do critério de aptidão nas práticas corporais.
O segundo é o princípio da diversidade, que procura legitimar as diversas possibilidades de aprendizagem que se estabelecem a partir da consideração das dimensões afetivas, cognitivas, motoras e sócio-culturais dos alunos.
O último aspecto refere-se às categorias de conteúdos conceituais (fatos, conceitos e princípios), procedimentais (ligados ao fazer) e atitudinais (normas, valores e atitudes). Os conteúdos conceituais e procedimentais, por estarem próximos, incluem-se nos processos de aprendizagem, de organização e de avaliação. Os conteúdos atitudinais apresentam-se como objetivos de ensino e de aprendizagem, apontando para a necessidade de o aluno vivenciá-los no cotidiano escolar (BRASIL, 1998).
Apesar da legislação (9.394/96) e os Parâmetros Curriculares Nacionais significarem um avanço na educação brasileira, tem-se de considerar como essas medidas serão interpretadas pela sociedade e, mais especificamente, como o meio escolar está re-significando a Educação Física a partir dessas novas referências.
A grande questão que se coloca é de que forma interferir nos meios escolares a fim de concretizar as propostas presentes nos PCN’s. Uma possibilidade seria atuar na formação acadêmica dos professores de Educação Física. Essa ação deve estar centrada em uma reformulação curricular. Os PCN’s fariam parte dos conteúdos abordados nos cursos, a partir dos quais se sugeririam novas formas de trabalho.
Numa perspectiva mais imediata, desenvolver programas de formação continuada destinados aos professores que já atuam na rede de ensino poderia ser uma alternativa para enfrentar o desafio de romper com o tradicional, que tem como foco a aptidão física.
Considerações finais a respeito da Educação Física Escolar, os Parâmetros Curriculares Nacionais e a atual legislação
Para concluir, Sá e Godoy (2001), ressaltam que não se trata de acreditarmos que é necessário mudar radicalmente os conteúdos desenvolvidos pelos professores de Educação Física, mas criar possibilidades de atualização considerando as novas realidades sociais e ressaltando a função sócio-cultural da Educação Física no processo formativo do aluno do Ensino Fundamental.
Referências
BRASIL. Lei n° 9.394 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Brasília: Congresso Nacional, 1996a.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1996b.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Educação Física. Brasília: MEC/SEF, 1998.
COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.
NEGRÃO, R.F. A Educação Física - a educação da "fisicalidade" humana, 1999. Dissertação (Mestrado) – PUC-SP, São Paulo, 1999.
SÁ, I.R. de; GODOY, K.M.A. de . A Educação Física, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) e a atual legislação. Revista Corpoconsciência 8, Santo André, n.8, p.59-66, 2001.
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